Quando a filosofia é apresentada no ensino médio, a primeira
dificuldade que os alunos têm é relativa à compreensão do que é a filosofia.
Afinal, muitos de vocês, estudantes secundaristas, nunca estudaram a disciplina
anteriormente, e poucos já leram algum livro de iniciação à filosofia.
Um bom
modo de introduzir a filosofia na sala de aula é demarcá-la frente a outras
disciplinas. É importante que se perceba, logo de início, as particularidades
da filosofia, e em que aspectos a filosofia é diferente das outras matérias. A
partir daí, é possível compreender o que é a filosofia.
Como
começar?
Em
primeiro lugar, definindo um ponto de partida em comum com as outras
disciplinas. Todas as disciplinas têm um objeto e um método. O objeto da
biologia, por exemplo, é o conjunto de fenômenos da vida. O objeto da física é
o conjunto de fenômenos da natureza, de fenômenos do universo. O objeto da
história é o conjunto de registros do homem no tempo passado que se apresentam
em nosso tempo.
Todas as
disciplinas têm, também, um método. O método da biologia e da física é o método
experimental, ou o método hipotético-dedutivo. O método da história é a análise
documental, ou a análise arqueológica, ou o estudo dos registros de várias
espécies que podem ser encontrados no momento em que se faz a história.
A
filosofia também tem um objeto e um método. Quais serão eles?
Procuremos
um caso de uma ciência a partir do qual podemos demonstrar de que tipo é o
objeto filosófico. Peguemos, por exemplo, uma lei da física. A segunda lei de
Newton diz que “a força aplicada por um corpo é igual à sua massa multiplicada
pela sua aceleração”, ou F = m a. A aceleração é a razão entre uma medida de
espaço, que pode ser o metro, e uma medida de tempo, que pode ser o segundo; a
aceleração pode ser medida, portanto, em m/s² . A fórmula da segunda lei de
Newton, assim como o que significa a aceleração, são coisas que os alunos do
ensino médio estão cansados de saber. São assuntos da física.
Você,
aluno, usa os metros e os segundos sem pestanejar. Os metros e os segundos não
são problemáticos na física. São pressupostos. O espaço e o tempo são
utilizados na física acriticamente. O professor de física jamais perguntará
numa prova: “O que é espaço?”, “O que é tempo?”. Esses problemas já não
pertencem à física. São problemas filosóficos.
Os
problemas filosóficos são relativos aos conceitos utilizados por nós, noções
que geralmente passam desapercebidas, a respeito das quais não nos preocupamos,
idéias que não analisamos.
Portanto,
o objeto da filosofia é o conceito, é a noção, é a idéia. Quer sejam conceitos,
noções e idéias do nosso dia-a-dia, quer sejam parte de domínios específicos do
conhecimento.
O método
da filosofia também não é semelhante ao método das ciências físicas ou das
ciências humanas. O trabalho sobre os conceitos acontece por meio do diálogo,
da polêmica, da discussão – seja com filósofos amigos, por meio de conversas
pessoais ou de diálogos de artigos, seja com a obra textual de filósofos que
não conhecemos pessoalmente.
Ora, se o
objeto da filosofia é o conceito e se o método da filosofia é argumentativo,
então a filosofia pode alcançar a verdade? Não parece que cada um terá sua
verdade pessoal? Ou seja: na filosofia, tudo é relativo?
Numa
conversa entre um botafoguense e um vascaíno sobre futebol, não se pode afirmar
que um dos dois esteja certo. Cada um defenderá seu time. Cada um acreditará
que seu time é melhor, ou mais vibrante, ou mais bacana. A filosofia não pode
fazer nada em relação a discussões como essa.
Contudo,
em relação a problemas verdadeiramente filosóficos, a situação não é a mesma.
Vamos supor que estamos diante de dois filósofos: um, ateu; o outro, teísta. O
ateu procura argumentar que Deus não existe, o teísta procura argumentar que
Deus existe.
A
princípio, poderíamos dizer: cada um com sua verdade. Se um acredita que Deus
existe, então para ele Deus existe; se o outro acredita que não, então para ele
Deus não existe, e temos a solução para que eles não briguem.
Olhando
mais de perto, essa solução não é boa. Aliás, é péssima, porque é inútil. Não
conduz à investigação, mas ao preconceito e ao obscurantismo teísta ou à
cegueira ateísta.
Objetivamente:
ou Deus existe, ou Deus não existe. Deus não pode existir e não existir ao
mesmo tempo. Um dos filósofos está certo, o outro está errado.
Para
descobrir quem está certo e quem está errado, os filósofos comparam seus
argumentos. A posição que apresentar os melhores argumentos é considerada a
melhor posição naquele momento.
Para que
isso funcione, evidentemente, é necessário que ambos os filósofos tenham uma
atitude que se chama honestidade intelectual. A honestidade intelectual, entre
outras coisas, exige que, quando uma discussão acontece, ambas as partes
estejam dispostas tanto a convencer quanto a ser convencidas. O filósofo sério aceita
a possibilidade de rejeitar sua posição original e aceitar uma posição
diferente, se seus argumentos forem piores do que os do outro.
Novamente
surge outro problema: parece que então a filosofia é uma atividade sem
objetivo. Se hoje o filósofo aceita um argumento que prova que Deus existe (e,
que, portanto, deve levar a existência de Deus a sério), mas amanhã pode ser
convencido, por um argumento melhor, de que estava enganado, e depois de amanhã
pode refutar o argumento contrário à existência de Deus, então parece que a
filosofia não está buscando a verdade, mas é apenas uma brincadeira literária
ou um jogo lógico – e que, portanto, é melhor nem se preocupar com esses
assuntos filosóficos.
A
filosofia, no entanto, não é uma atividade que visa apenas argumentar por
argumentar, nem de argumentar para vencer o debate. A argumentação, na
filosofia, tem um sentido muito claro: chegar à verdade.
Chegar à
verdade como, se o que é considerado verdadeiro hoje pode ser considerado falso
amanhã?
A
filosofia tem o objetivo de alcançar a verdade acerca das noções, dos conceitos
e das idéias mais fundamentais. Mas a verdade não é, necessariamente, absoluta.
A verdade é provisória. A verdade é a melhor resposta que se tem atualmente.
Isso não faz a verdade ser relativa; a verdade é uma conseqüência necessária da
melhor argumentação possível hoje.
Por isso,
é melhor estudar filosofia do que não estudar. Ter a certeza de chegar a uma
verdade válida, ainda que provisória, é melhor do que não chegar à verdade e
viver cheio de opiniões frágeis fundamentadas em preconceitos. Viver com uma
verdade provisória, aberta à discussão, é melhor do que viver sem verdade
alguma, achando que se tem todas as verdades do mundo.
A
filosofia não é, portanto, mera opinião. Não é, também, qualquer argumentação.
É a busca pela melhor argumentação, é o contrário da opinião – isso quer dizer
que o filósofo não é uma pessoa cheia de opiniões sobre tudo, mas uma pessoa
que investiga idéias e noções, utilizando uma técnica (lógica e argumentativa) para
estudá-las.
Por esse
motivo é importante o estudo da lógica e da técnica argumentativa. Você, aluno,
deve saber utilizar os argumentos com propriedade na construção de ensaios
sobre temas filosóficos. Afinal, a primeira função do estudo da filosofia é
tornar os estudantes capazes de filosofar com alguma competência.
O ensaio
filosófico é um texto argumentativo crítico no qual o autor expõe um problema
filosófico, apresenta sua posição, mostra argumentos de posições diferentes e,
finalmente, demonstra que a sua posição tem argumentos mais fortes do que as
outras.
Daí se
pode compreender a importância que tem o estudo da história da filosofia. Para
conhecer o desenvolvimento mais atual de um problema filosófico, é necessário
saber ao menos um pouco da história desse problema. Senão, corre-se o risco da
utilização de um argumento que já foi refutado muitas vezes há muito tempo. Por
exemplo: um aluno que esteja argumentando a favor da existência de Deus,
conhecendo um pouco da história desse problema, não utilizará o argumento
ontológico de Descartes, pois saberá que há sérias dificuldades nele. Poderá
utilizar, por outro lado, alguma concepção de Deus apoiada por argumentos mais
fortes, com a concepção de Spinoza, ou a concepção de Teilhard de Chardin, ou a
de Alvin Plantinga ou alguma outra – sabendo, também, se proteger dos
contra-argumentos com que a sua argumentação pode ser enfraquecida. Por isso a
necessidade de estudar a história da filosofia.
Finalmente,
a filosofia é uma atividade que todos praticam em vários momentos de todos os
dias. A única diferença entre o leigo e filósofo profissional é que este último
aprendeu a utilizar uma série de técnicas filosóficas que tornam o filosofar
mais eficiente. Aprender algumas dessas técnicas é a primeira tarefa que um
aluno de filosofia – quer no ensino médio, quer na faculdade – deve cumprir.
Para estudar o objeto da filosofia é necessário um método filosófico, método
que conduz ao objetivo de encontrar algumas verdades (ainda que provisórias).
Em nossa matéria, aprenderemos justamente as ferramentas mais básicas para que
possamos filosofar melhor: a lógica, a técnica argumentativa crítica e a
história da filosofia. Ao final do ano, vocês não saberão “a filosofia”: pelo
contrário, descobrirão que a filosofia começa pelo filosofar, e que o filosofar
é apenas um começo.
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