Todo
leitor da obra de Hannah Arendt é instigado, inicialmente, a investigar o
porquê de suas linhas serem tão desconhecidas do público. Atribui isto,
posteriormente, à complexa decodificação necessária para o entendimento
de qualquer tópico de estudos da autora. Este verdadeiro exercício
lógico-filosófico não encontra muitas mentes dispostas em nossos dias.
Neste texto iremos analisar, apenas superficialmente o “fio condutor” e, de
certa forma, o elemento que subjaz a todos os escritos de Hannah Arendt: a
crise profunda do mundo contemporâneo.
Esta crise inicia-se, segundo a autora, logo após a destruição da tradição e do
modo de pensar político, no plano intelectual, e a diluição do espaço da
liberdade e felicidade pública, na esfera social. As conseqüência funestas
desta destruição e diluição são para ela o motivo do homem “vaguear na
obscuridade”, como relata Tocqueville, citado por Hannah no prefácio de uma de
suas obras.
Celso Lafer, aluno de Hannah Arendt na Universidade de Cornell
esclarece ao comentar a obra da mestra, que esta se apresentou consciente desta
crise logo no seu primeiro livro The Origins Of Totalitarianism onde investiga
as fontes e os instrumentos do surto totalitário, que aliás, tinha motivo especial,
já que era alemã e judia.
Foi com esta obra, aponta Lafer, que Hannah Arendt causou grande
impacto e entrou para a cena pública mundial.
Em The Origins Of Totalitarianism, especificamente em seus
capítulos finais, a autora demonstra que a experiência totalitária não teria
acontecido se não houvesse antes a crise do próprio espírito humano, marcada
pelo desenraizamento do homem e seu conseqüente desligamento com a tradição. A
tradição a qual ela se refere não é a entendida atualmente, “tudo o que é
passado”, mas sim a transmissão de lógica plural que conforme ela percebera,
já havia se esfacelado na Europa de seus dias.
Era possível entender, nesta altura, que o que Hannah compreendeu
não era uma estado-de-coisas fruto de circunstâncias que aconteciam
exclusivamente nos países de regime totalitarista, mas sim, um desdobramento
histórico que havia afetado toda a Europa: a ruptura com o pensamento político
tradicional do ocidente.
Terror, repressão e ideologia. Estes são os conseqüências mais
marcantes dos regimes totalitaristas investigados por Hannah em The Origins of
Totalianism. Mas, no entanto, pensamos que a busca da autora foi de tal
profundidade que seu tema transcendeu o lapso temporal da Segunda Grande Guerra
para se tornar um modo de percepção de todo o mundo contemporâneo.
Assim, dando prosseguimento aos seus estudos – e contrariando seus planos
iniciais - publica em 1958 The Human Condition onde investiga a fundo como as
revoluções e rupturas seculares puderam resultar em um “mundo de trevas”
que deu origem à cultura e ao mundo contemporâneo. A obra gira em torno
de três temas que são os capítulos do livro: Labor, Trabalho e Ação chamados
por ela – que emprestou termos do Latim – de Vita Activa.
Por Labor (labor) entendia a autora como “a atividade que
corresponde ao processo biológico do corpo humano” e está relacionado
intrinsecamente aos processos vitais do ser humano. Trabalho (work), por sua
vez, “é a atividade correspondente ao artificialismo da existência humana” que
“produz um mundo artificial de coisas” por fim “ação” corresponderia à
“condição humana da pluralidade” a conditio per quam da realização política.
Depois de introduzir muito novos conceitos lingüísticos ao glossário
político e ainda rever os já existentes, a autora passa a tratar da inversão do
valor social da Vita Activa entre a antiguidade clássica e a era moderna.
Compreendeu, por exemplo, que a esfera pública da antiguidade era
ocupada obrigatoriamente por homens livres e, a condição para que estes assim o
fossem era a de não laborarem por seu sustento. Isto se deve ao fato de, nestas
sociedades, a vida privada e seus individualismos serem tidas como inferiores à
vida pública, especialmente quando falamos em labor, que é atividade biológica
de simples permanência das faculdades vitais. Em outras palavras, a sociedade
antiga via com inferioridade e até desdém alguém que exercesse atividades
laborais apenas pela sua sobrevivência, já que via nestas pessoas apenas a
similaridade com as atividades dos animais.
A era moderna, segundo Hannah Arendt não apenas diluiu a antiga divisão
entre o privado e o público, mas também alterou o significado dos dois termos e
a sua importância para a vida do cidadão. Com o trabalho transferido para o espaço
público de relações, graças ao nascimento das fábricas, muito do que se
entendia como público tornou-se privado e muito do que era privado tornou-se
público, com perda para ambos. A Res Publica com isso, deixou de ser o fator
principal que movia os homens o pensamento plural - como dizia Hannah –
deixou de existir. O lugar onde os homens exerciam sua liberdade – que, para
ela, só é possível assim – foi destruído e dele restou apenas uma geral
alienação do mundo, uma sociedade de operários (laboradores) que anseiam
utopicamente uma sociedade sem trabalho, sendo que, estes mesmos homens já
haviam perdido completamente o domínio sobre qualquer outra forma de
organização social. Com isto, chega ao fim também o espaço de surgimento do
pensamento alargado ao qual Kant se referia, ou ainda, o pensamento de
estrutura dialógica como nos diz o nosso Tércio Sampaio Ferraz Junior.
Por observar tão dedicadamente a Vita Activa contemporânea a autora de
The Human Condition critica outros grandes pensadores anteriores a ela, como o
próprio Karl Marx e, em muitos aspectos, credita a ele a ruptura final com o
modo de pensar político tradicional. A “prática da filosofia” proposta pelo
marxismo também é duramente criticada e na sua maior parte a própria
interpretação de Hegel sofre algumas desmistificações na obra de Arendt.
Assim, a Res Publica tornou-se a maior preocupação de Hannah Arendt
conforme acentua Celso Lafer no posfácio de The Human Condition. A autora se
situa em sua explicação da realidade do nosso século em três eventos principais
que alteraram a vida do homem moderno profundamente: o descobrimento da
América, a invenção do telescópio e a Reforma Protestante, no livro, ela trata
minuciosamente de cada um deles perfazendo um todo impressionantemente coerente.
É essa mesma preocupação que impulsiona Between Past and Future com a
última edição de 1968. A obra é composta de seis ensaios, nos quais Hannah
inaugura o que ela chama de um novo modo de pensar a verdade.
Maduro, este que foi um dos mais profundos livros de Hannah alça vôos
ainda mais altos. A obra busca situar na vida da mente o recanto onde a verdade
possa surgir tendo em vista a cadência do espaço-tempo.
Ainda em Between Past and Future notamos que Hannah reafirma a
crise do mundo contemporâneo desta vez, apontando e esmiuçando sua causa como
um definhamento tanto do plano da Vita Activa quanto da Vita Contamplativa. Em
outras palavras, o homem deixou de situar seu pensamento na fissura
temporal e histórica do próprio homem, pois “desde que o passado deixou de
lançar luzes sobre o futuro” – para citar novamente Tocqueville – “a mente do
homem vagueia na obscuridade”.
A autora apresenta na introdução desta obra uma parábola de Kafka que,
aliás, sempre foi alvo de muita admiração de Hannah.
Na parábola de Kafka o homem – chamado brilhantemente pelo autor de
“ele”, figurando assim de uma forma genérica e abstrata, não como “o homem” ou
“aquele” – é atirado para frente pelo passado, que, aliás, sequer “passou”, e
ainda é empurrado para trás pelo futuro.
Hannah toma a liberdade de continuar contando a parábola de Kafka em seu
livro, afirmando ainda que a fissura do lapso temporal onde o “ele” de Kafka se
situa é paradoxalmente, – mas não insoluvelmente - a pequena
sutileza do pensar humano onde a verdade pode florescer.
No primeiro ensaio de Between Past na Future Hannah, baseada em seus
estudos de História – seu conceito e objeto cognitivo - de uma maneira
bastante instigante compara o sentido contemporâneo de História ao sentimento
Helenístico clássico da Vita Activa e da imortalidade, que a seguir
brevemente explico:
Para os helenos tudo no mundo seguia uma eterna transição entre ser e
não-ser de modo que todas as coisas nasciam e pereciam em um fluxo eterno que eles
entendiam ser o próprio substrato da própria imortalidade. Os homens, por sua
vez, ao se encontrarem conscientes de sua própria condição se tornavam mortais,
já que a natureza simplesmente é, enquanto o homem tem a “consciência de ser”.
Assim, um homem heleno poderia se tornar imortal apenas pelos seus grandes
feitos, e somente a vida pública concedia a possibilidade de tais feitos. O
conceito de História então, seria o de imortalizar estes atos e registra-los
para a posteridade, imortalizando – conforme entendiam os helenos – seus
autores.
Já contemporaneamente, mais precisamente após o cristianismo, o homem
passou a perceber a natureza do mundo como peremptória, decadente, mortal e
originalmente pecaminosa. O homem, nesta realidade já nascia com a alma
imortal e era da condição humana retornar ao estado originário de imortalidade
através da salvação. É daí, portanto, o pensamento cristão de definirem como
“viajantes na terra”, transeuntes do mundo terrestre.
Nota-se portanto, quão profundas são as mudanças de percepção que o
homem sofre ao presenciar certos eventos e que é preciso de mentes que se
aventuram neste terreno tão misterioso e surpreendente para desvendá-los.
Já no terceiro ensaio de Between Past and Future Hannah trata do real conceito
de autoridade cujo significado não é mais encontrado na vida contemporânea.
Segundo ela, este conceito não tem nada de força, coação ou mesmo o império da
Lei. Ele gira em torno de hierarquia legitimada pela democracia. Não é um
relacionamento entre iguais, concorda Hannah, que é o que anima o discurso
político mas é legítimo na medida em que seja fruto da inteira liberdade de se
constituir a hierarquia. Como diz a própria Hannah: O direito e a legitimidade
de quem manda e obedece está onde ambos reconhecem e ambos têm seu lugar
estável e pré- determinado”
A aspecto mais conclusivo e impressionante no pensamento de Hannah
Arendt é sem dúvida o político. Seu desenvolvimento filosófico foi desvendar
através da mecânica dos fatos políticos o lugar onde o a humanidade realmente
se situa.
Por fim, os conjuntos de fatos que nos fizeram livres são os mesmos que
não conseguiram legitimar nossa liberdade já que no processo
revolucionário perderam-se, na práxis, os conceitos de público/privado, autoridade/
força, bem como os de cultura, política e até de Estado.
Nada é tão identificável com a realidade brasileira do que esta “falta
de referências”. Nossos conceitos de política, cultura, liberdade e autoridade
se esvaem na ignorância das massas. Mas, segundo nos propõe Hannah Arendt , a
redescoberta da sabedoria acontecerá com os que resgatarem a plena realidade de
seu ser concreto que ressurge quando situamos nosso pensamento na lacuna
temporal entre o passado e o futuro. Por fim, a própria Hannah finaliza:
... the conditions of human existence – life itself, natality and mortality,
wordliness, plurality and the earth – can never “explain” what we are or
answer the question of who we are for the simple reason that they never
condition us absolutely.” The Human
Condition
[... as condições de existência humana – a vida em si, natalidade e
mortalidade, mundanidade, pluralidade e planeta - nunca podem
"explicar " o que nós somos ou responder a pergunta de que lado
estamos pela simples razão de que eles nunca condicionam-nos absolutamente]
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