Durante a República Velha as
oligarquias rurais mantiveram sob sua tutela praticamente todo o domínio
político do Brasil, entretanto, o poder do coronel encontra suas origens ainda
durante a Colônia, quando a Coroa se valia dos proprietários para manter o
controle sobre as regiões mais ermas. Por este motivo conferiu-se a estes
homens poderes políticos e militares, atuando como representantes da Coroa em
suas regiões. Não demorou muito para que estes indivíduos se fortalecessem e se
transformassem em líderes políticos autoritários e de grande influência
local.
A denominação “coronel” veio com a criação da Guarda Nacional, em 1831, que
conferiu aos chefes locais das antigas Ordenanças tal título. Mesmo após a
extinção da Guarda, o uso desta alcunha permaneceu e o poder daqueles que a
carregavam não sofreu nenhuma alteração, ao contrário, foi se intensificando
ainda mais com o passar do tempo, atingindo seu auge na República Velha.
Neste período, a política nacional era determinada pelos coronéis, que apesar
de não se envolverem diretamente, usavam a sua influência para fazer com que as
decisões do poder público se direcionassem a favor de seus interesses. Além
disso, era comum que os funcionários públicos fossem escolhidos pelos grandes
proprietários, seguindo um critério de confiança pessoal, numa atitude que
manifesta o caráter particularista, voltado para as vontades particulares, da
política coronelista da República Velha.
Foi justamente no contexto do apogeu do poder do coronelato, quando esta elite
exercia com maior veemência sua autoridade e seu autoritarismo, que surgiram os
grupos de cangaceiros. Neste sentido, o cangaceirismo ganhou corpo a partir da
rebelião de muitos sertanejos que haviam sido vítimas de desmandos,
perseguições, humilhações e violência dos poderosos coronéis locais. O
banditismo se configurava para essas pessoas como a única oportunidade de se
fazer justiça e de fugir da precariedade e da miséria a que estavam condenadas
por uma sociedade marcada pela desigualdade.
Porém, o movimento que se iniciou como contrário à dominação do coronelato em
pouco tempo acabou sendo por ele cooptado. Associando-se aos potentados
regionais, os cangaceiros tinham a garantia de um local seguro para se esconder
da polícia e para se abastecer de alimentos e armamentos. Os fazendeiros que
davam proteção aos cangaceiros ficaram conhecidos como “coiteiros”.
A constituição de uma rede de coiteiros foi fundamental para a sobrevivência
dos bandos. Nos momentos em que se encontravam mais fragilizados, famintos,
feridos e sem possibilidade de continuar fugindo do cerco policial pela
caatinga, era com a ajuda dos coiteiros que os cangaceiros poderiam se
recuperar, restabelecer as forças sem ser incomodados pelas tropas volantes e,
assim, prolongar a existência do grupo.
Mesmo Lampião, o mais célebre dos cangaceiros, precisava do auxílio de
coiteiros, grandes responsáveis pela longevidade de seu bando;
“O sucesso de Lampião apoiava-se na rede de coiteiros e no abastecimento
constante de armas. Sustentava-se pelo suborno e pelos tratos entre o cangaço e
o coronelismo, que definiam zonas livres de perseguição e indicavam áreas onde
os cangaceiros podiam cometer seus assaltos. Essas áreas pertenciam
naturalmente ao ‘território inimigo’, redutos de políticos ou famílias
contrárias aos protetores de Lampião.”
Por outro lado, os coronéis também se beneficiavam com as alianças que
estabeleciam com os cangaceiros, que em troca do “acoitamento” se colocavam a
serviço do potentado, agindo como uma espécie de milícia. Os latifundiários se
valiam dos cangaceiros para empreender ações cujo objetivo era a
disciplinarização de seus agregados e a intimidação de seus inimigos políticos.
Sob esta perspectiva, os cangaceiros tinham a função de mantenedores da ordem
social vigente, garantindo o controle do coronel sobre a população pobre e
sobre a política local.
A partir disso nota-se que o cangaceirismo não se tratava de uma forma de
contestação das estruturas sociais baseadas no latifúndio, mas fazia parte
deste sistema, era mais um instrumento de afirmação do poder do coronelato e de
dominação:
“Nas áreas governadas por proprietários de terras pré-capitalistas, o jogo
político lança mão das rivalidades e relações das principais famílias e de seus
respectivos seguidores e clientes. Em última análise, o poder e a influência do
chefe de tal família repousa no número de homens que ele tem a seu serviço, oferecendo
proteção e recebendo, em troca, aquela lealdade e aquela dependência que são a
medida de seu prestígio e, conseqüentemente, de sua capacidade de estabelecer
alianças: comanda assim as lutas armadas, as eleições ou que mais determina o
poder local.”
De fato, cangaceiros e coronéis estabeleceram uma relação de certa forma
simbiótica, na qual os potentados usavam o apoio dos bandoleiros para reafirmar
seu domínio e fortalecer seu poder, enquanto os cangaceiros necessitavam dessas
alianças para continuar sobrevivendo, aproveitando-se da segurança que elas
podiam oferecer.
Observa-se que essa acomodação de interesses, expressa por uma convivência em
certa medida amistosa, revela justamente o contrário do que o mito do cangaço
pressupõe: os grupos de cangaceiros não agiam com o objetivo de contestar a
ordem social estabelecida, suas ações não eram protestos contra o latifúndio e
o sistema coronelista, mas, e primeiro lugar, uma estratégia de sobrevivência,
uma maneira de fugir das imposições da seca, da fome e da miséria.
Em segundo lugar, eram atos de vingança pessoal, pois neste sentido os
cangaceiros:
“São menos desagravadores de ofensas do que vingadores e aplicadores da
força; não são vistos como agentes de Justiça, e sim como homens que provam que
até mesmo os fracos e pobres podem ser terríveis.”
Analisando esse ponto é possível perceber uma tentativa de imposição de um
poder análogo ao poder dos coronéis, mas que em nenhum momento pretende
questioná-lo ou derrubá-lo, ao contrário, apóia-se nele para se estabelecer e
para permanecer funcionando. Tal poder se refere àquele que se baseia na força
e na “macheza” e do qual os latifundiários também lançam mão para impor seu
domínio.
Sob esta ótica, observa-se que se para os coronéis a violência é uma maneira
eficaz de manter sob controle os sertanejos pobres e se sobrepor a seus rivais
nas questões políticas, para os cangaceiros esta mesma violência é um
instrumento para fazer justiça, na medida em que seu conceito de justiça está
diretamente vinculado à “lei do mais forte”:
“A justiça baseia-se na força – as leis do país são uma abstração na
caatinga. Essa força, ao ser exibida, prestigia quem manda, pois ressalta a
‘macheza’ do mandante. Por sua vez, ao executar as ordens, distribuindo surras
e provocando mortes, o cangaceiro cresce no conceito popular, pois demonstra
que também é macho.”
Esse tipo de idéia de justiça e de lei demonstra a ausência do Estado no sertão
do Nordeste, dando margem para o fortalecimento dos coronéis e para a aplicação
indiscriminada do seu poder, cujo mecanismo básico é a perpretação da violência
através de seus capangas, entre eles os cangaceiros. Dessa forma, a aliança
entre cangaceiros e coronéis promove a consolidação de um poder muitas vezes
alheio ás determinações do Estado, que institucionaliza a violência tanto dos
potentados quanto dos bandoleiros.
Diante da análise de tais elementos considera-se que as articulações entre o
cangaço e o coronelato foram fundamentais para a afirmação de ambos os lados.
Sob esta perspectiva, percebe-se que o mito do “bom cangaceiro”, que age em
favor dos pobres, lutando contra o sistema e tirando dos ricos para dar aos
mais humildes não se sustenta. O que ocorria de fato era uma tentativa dos
cangaceiros de atender aos próprios interesses, de dar vazão a suas indignações
e de garantir sua sobrevivência.
Realmente, as condições sociais injustas, o autoritarismo dos potentados e a
miséria na qual estavam submersos fomentaram o espírito de revolta dos
cangaceiros, entretanto, este não tomou a forma de revolta social. O que se via
na verdade era a opressão do sertanejo pobre por indivíduos da mesma origem,
agindo em nome dos poderosos, colaborando para a manutenção de uma estrutura de
exploração da qual eles mesmos haviam sido vítimas.
Após a Revolução getulista(era de Getúlio Vargas)de 1930, a perseguição ao
cangaço se intensifica. Mudam-se as formas de garantir os interesses. Via de
regra, também mudam-se as elites dominantes no país. O fim da ‘política dos
governadores’ mostra como novas relações de poder político são instaurados A
perseguição aos grupos políticos de esquerda também tem sua vertente na
perseguição aos cangaceiros – pretensos justiceiros que ampliariam o poder do
povo sofrido, usurpando-o das elites. Sendo também uma ameaça so Estado (em
muitos casos pelas próprias alianças com chefes locais), deveriam ser
exterminados.
Essa última análise, de caráter ideológico, é discutível. No entanto, é menos
discutível o fato de que a intensificação da perseguição aos cangaceiros pode
nos mostrar que estava sendo operada uma uma nova guinada na política nacional.
Com o golpe do Estado Novo (1937) e a instauração de interventorias nos
estados (os interventores eram os governadores nomeados pelo governo federal),
o anseio por um Estado forte e eficaz no combate ao banditismo social e ao
domínio local por chefetes e coronéis, foi uma máscara que escondia por trás de
si um rosto bizarro… anti-democrático e, mesmo, fascista. Por sua vez, as
políticas de massas, como as sequentes conquistas trabalhistas, davam área de
progresso nos centros urbanos.
Não era o fim do elitismo, mas sim o deslocamento de elites no poder. Em muitos
casos, as elites se mantiveram na base do “sou coerente e nunca mudo de lado:
estou sempre com a situação“. É nesse sentido que as práticas de poder local se
mantém. O fim do coronelismo é o fim de um sistema, não o fim de uma prática de
dominação política e econômica – esta se mantém ainda, de diversas formas, até
os dias de hoje – mas, é mais prudente chamar a isso de mandonismo local.
O fato é que logo após o golpe do Estado Novo, o bando de Lampião foi
esfarelado, sobrevivendo apenas alguns remanescentes que se refugiaram em
várias partes do país.
Nenhum comentário:
Postar um comentário