Autor: José D'Assunção Barros
A História Serial
está entre algumas das modalidades historiográficas mais emblemáticas do último
século, uma vez que contribuiu para a constituição de um influente paradigma
que praticamente hegemoniza todo um setor da historiografia francesa entre os
anos 1940 e 1970. Quando surgiu, a História Serial chegou a ser vista como uma
revolução nas relações do historiador com as suas fontes, e alguns chegaram
mesmo a pensar que este tipo de historiografia substituiria de todo o antigo
fazer histórico tradicional. Ao invés das fontes habituais que eram sempre
tomadas para uma abordagem qualitativa, a chamada História Serial introduziu
nas proximidades dos meados do século XX uma perspectiva inteiramente nova:
tratava-se de constituir “séries” de fontes e de abordá-las de acordo com
técnicas igualmente inéditas.
Se pensarmos em termos de constituição de um recorte de pesquisa pelo
historiador, podemos dizer que, com a História Serial, recorta-se o objeto não
propriamente em função de uma determinada realidade histórico-social
concernente a uma delimitação espaço-temporal preestabelecida, mas mais
precisamente em função de uma determinada série de fontes ou de materiais que é
constituída precisamente pelo historiador. Ainda que se possa pensar em outras
possibilidades de utilização historiográfica da serialização, este foi o modelo
que começou a emergir a partir de meados do século XX, tendo como ponto de
partida os trabalhos pioneiros de Ernst Labrousse sobre "Os preços no Antigo
Regime", e como marco mais significativo a célebre obra de Pierre Chaunu
sobre 'Sevilha e o Atlântico' (1954).
É importante distinguir a História Serial de uma outra modalidade que, por
vezes, apresenta-sa como sua co-irmã, mas que se refere a outro critério: a
História Quantitativa. História Serial e História Quantitativa podem aparecer
conectadas, mas é possível perfeitamente pensar trabalhos de História Serial
sem a preocupação quantitativa propriamente dita, e, de todo modo, é preciso
distinguir bem uma modalidade da outra. Para entendermos bem esta diferença,
vamos, antes de mais nada, refletir sobre o que é exatamente uma
"série" na historiografia.
Na chamada ‘História Serial’ o historiador estabelece uma “série”, e é esta
série que particularmente o interessa. François Furet, em seu 'Atelier do
Historiador' (1982), define a História Serial em termos da constituição do fato
histórico em séries homogêneas e comparáveis. Dito de outra forma, trata-se de
“serializar” o fato histórico, para medi-lo em sua repetição e variação através
de um período que muitas vezes é o da longa duração. Na verdade a duração
longa, ou pelo menos a média duração (relativa às conjunturas), foram as que
predominaram nos primeiros trabalhos de História Serial – muito voltados, nesta
primeira época, para a História Econômica e para a História Demográfica, ao
mesmo tempo que combinados com a perspectiva de uma História Quantitativa.
Todavia, pode-se proceder a uma serialização relacionada também a um período
relativamente curto, desde que o conjunto documental estabelecido seja
suficientemente denso.
De certo modo, as possibilidades de tratamento serial permitiram uma sensível
ampliação de alternativas em termos de recorte historiográfico, uma vez que as
séries singulares a serem construídas por cada historiador já não se
enquadrariam nas periodizações tradicionalmente preestabelecidas. Criar uma
série é, em certa medida, recriar o tempo – assumi-lo como ‘tempo construído’,
e não como ‘tempo vivido’ a ser reconstituído.
Por outro lado, optar pelo caminho serial pressupõe necessariamente escolher ou
construir um problema condutor muito específico – problema este que é fator
fundamental na constituição da própria série. A História Serial veio assim
diretamente ao encontro de uma História Problema, como as demais modalidades
historiográficas que passaram a predominar na historiografia profissional do
século XX.
Com relação a este aspecto, e em se tratando de uma série documental homogênea,
não teria sentido examinar esta série evasivamente, de modo meramente
impressionista. A História Serial constitui-se necessariamente de uma leitura
da realidade social através da série que foi construída pelo historiador em
função de um certo problema (sendoque muitas vezes a própria série chega a se
confundir com o problema,com ele entremear-se na prática historiográfica). Não
se trata, de todo modo, de optar inicialmente pelo estudo de uma determinada
sociedade para só depois buscar as fontes que permitirão este estudo ou o
acesso a esta sociedade, como poderia se dar em outros caminhos
historiográficos. Pode-se dizer que, nesta modalidade historiográfica, o
problema e as fontes chegam juntos: fazem parte um do outro. O que o
historiador serial estuda é precisamente a série: este é basicamente o seu
recorte e a essência de seu objeto. E pode-se compreender como uma “série”
tanto os fatos repetitivos que permitem ser avaliados comparativamente, como
uma determinada documentação homogênea.
No primeiro sentido, François Furet fala em termos de uma serialização de fatos
históricos que trazem entre si um padrão de repetitividade (fatos históricos
que serão obviamente de um novo tipo, não mais se reduzindo aos acontecimentos
políticos). No segundo sentido, ao examinar os novos paradigmas historiográficos
surgidos no século XX, Michel Foucault assinala que “a história serial define
seu objeto a partir de um conjunto de documentos dos quais ela dispõe” . Isto
abre naturalmente um grande leque de novas possibilidades:
“Assim, talvez pela primeira vez, há a possibilidade de analisar como objeto um
conjunto de materiais que foram depositados no decorrer dos tempos sob a forma
de signos, de traços, de instituições, de práticas, de obras, etc ...” (FURET,
1982]
Portanto, em que pese que fontes administrativas, estatísticas, testamentárias,
policiais e cartoriais se prestem admiravelmente a um trabalho de História
Serial, é possível também constituir em série documentação literária,
iconográfica, ou mesmo práticas perceptíveis a partir de fontes orais. É mesmo
possível constituir séries às quais não se pretenda necessariamente aplicar um
tratamento quantitativo propriamente dito, mas sim uma abordagem mais tendente
ao qualitativo – interessada ainda em perceber tendências, repetições,
variações, padrões recorrentes e em discutir o documento integrado em uma série
mais ampla, mas sem tomar como abordagem principal a referência numérica.
Uma das obras de Gilberto Freyre, por exemplo, constitui como série documental
para o estudo da Escravidão no Nordeste os anúncios presentes em jornais da
época – onde os grandes senhores anunciavam a fuga de escravos fornecendo
descrições detalhadas dos mesmos, inclusive sinais corporais que falavam
eloqüentemente das práticas inerentes à dominação escravocrata . Não é propriamente
o Escravo que é o seu objeto, mas “o Escravo nos anúncios de jornal”, como o
próprio título indica. Ou seja, busca-se recuperar um discurso sobre o Escravo
a partir de uma série que coincide com os periódicos examinados pelo autor;
procura-se dentro desta série perceber uma recorrência de padrões de
representação, mas também as singularidades e variações, e por trás destes
padrões de representação os padrões de relações sociais que os geraram.
Conforme logo veremos, a série pode se prestar à percepção do quantitativo, mas
também pode se prestarào entendimento das mudanças qualitativas. Mas antes de
adentrarmos este ponto, podemos desde já reconhecer que, com o advento da
História Serial em meados do século XX, os caminhos historiográficos marcados
pela ultrapassagem do documento isolado passaram a se integrar definitivamente
ao repertório de possibilidades disponíveis para o historiador. O recorte
documental mostra-se aqui como uma outra possibilidade para o historiador
delimitar o seu tema. Definido este recorte, surgirá então uma delimitação
temporal específica, que será válida para aquele recorte problemático e
documental na sua singularidade, e não para outros. Dito de outra forma, em
alguns destes casos é uma documentação que impõe um recorte de tempo, a partir
dos seus próprios limites e das aberturas metodológicas que ela oferece.
Será bastante buscar uma exemplificação final com o próprio estudo pioneiro de
Pierre Chaunu. O recorte de sua tese, estabelecido entre 1504 e 1650, é criado
a partir de uma primeira data em que a documentação da ‘Casa de Contratação de
Sevilha’ lhe permite uma construção estatística, e extingue-se no marco de uma
segunda data quando a documentação já não permite uma avaliação quantitativa
dos fatos (precisamente uma data relativa ao momento em que o comércio
atlântico deixa de trazer a marca do predomínio espanhol e em que,
consequentemente, a documentação de Sevilha se dilui como definidora de uma
totalidade atlântica). O recorte documental problematizado, enfim, organizou o
tempo do historiador.
Nesta parte final, gostaria de discorrer sobre uma confusão que constantemente
assalta o historiador em formação quando este é apresentado às diversas
modalidades historiográficas. Refiro-me precisamente à diferença entre História
Serial e História Quantitativa. Embora sejam comuns as já mencionadas
possibilidades de que as duas abordagens se superponham para formar uma
História Serial Quantitativa, as duas modalidades também podem andar separadas,
e existem diferenças a serem notadas entre estes dois campos históricos.
A História Serial refere-se ao uso de um determinado tipo de fontes
(homogêneas, do mesmo tipo, referentes a um período coerente com o problema a
ser examinado), e que permitam uma determinada forma de tratamento (a
serialização de dados, a identificação de elementos ou ocorrências comuns que
permitam a identificação de um padrão e, na contrapartida, uma atenção às
diferenças, às vezes graduais, para se medir variações). Já a História
Quantitativa deve ser definida através de um outro critério: o seu campo de
observação. O que a História Quantitativa pretende observar da realidade está
atravessado pela noção do “número”, da “quantidade”, de valores a serem
medidos. As técnicas a serem utilizadas pela abordagem quantitativa serão
estatísticas, ou basea-das na síntese de dados através de gráficos diversos e
de curvas de variação a serem observadas de acordo com eixos de abscissas e
coordenadas. Algumas análises quantitativas mais sofisticadas poderão utilizar
logarítimos, recursos matemáticos mais avançados como integrais e derivadas. O
computador será neste caso de uma ajuda inestimável. Com relação ao tipo de
fontes para a efetivação de uma pesquisa com base na História Quantitativa,
estas serão fatalmente “fontes seriais”, e aqui está o nó do esclarecimento.
A quantificação pressupõe a serialização (se não de fontes, pelo menos de
dados). O inverso é que não ocorre. Posso trabalhar com séries de fontes sem
estar necessariamente interessado no número. Estarei interessado em verificar
recorrências, mas não necessariamente quantidades. Posso, por exemplo,
verificar padrões iconográficos. A quantidade de documentos em que se repete um
determinado padrão, ou a sua recorrência com variações mínimas, isto pode até
ser contabilizado - mas como um recurso paralelo. E não necessariamente. A
chave para definir uma prática como História Serial é portanto a busca de
padrões recorrentes e variações ao longo de uma série de fontes ou materiais
homogêneos. Mas não necessariamente a quantidade, ou pelo menos isto não é o
principal. Assim, para dar um último exemplo, posso serializar notícias de
jornais durante um período mais ou menos longo para verificar a repetição de
determinado tipo de anúncios, ou a sua gradual variação ao longo do tempo, ou
mesmo as variações bruscas que serão indicativas de algum acontecimento que
produziu a transformação. A “série” é o que canaliza a atenção do historiador
na modalidade da História Serial; o “número” ou a medida é o que canaliza a
atenção do historiador no caso da História Quantitativa. Se as duas coisas
constituem o ponto nodal da abordahem historiográfica empregada, temos aí uma
conexão entre a História Quantitativa e a História Serial.
Um alerta final é sempre útil quando se apresenta, aos historiadores em
formação, as modalidades que trabalham com o quantitativo. Ao empreender uma
História Quantitativa, o historiador deve tomar o cuidado (isto é, se quiser
tomar este cuidado) para não realizar uma história meramente descritiva de
informações numéricas, sejam estas relativas à população ou à economia. Se a
sua História Quantitativa se resumir a uma exposição de quantidades, terminará
por se constituir meramente em uma História Descritiva, não-problematizada.
Convenhamos que este tipo de história é a contrapartida, para o caso da
História Narrativa, daquela tendência historiográfica do século XIX que ficou
conhecida como História Factual (ou História Eventual) devido à intensa crítica
que os historiadores da Escola dos Annales, e outros, fizeram a esta
historiografia não-problematizada (que também era chamada pejorativamente de
“historiografia positivista”, embora não se referindo necessariamente ao
Positivismo enquanto corrente sociológica).
Reconheçamos que narrar simplesmente os fatos, de maneira não-problematizada,
como se o que importasse na História fosse a mera descrição dos eventos ou “dos
fatos que aconteceram” (como chegou a propor Ranke em uma frase célebre) será
tão passível de críticas, de acordo com os critérios de uma História Problema,
como descrever simplesmente os dados demográficos ou econômicos de uma
determinada sociedade. Em uma caso teremos a História Narrativa Factual (da
qual está muito longe a moderna História Narrativa problematizada que começou a
aparecer a partir da década de 1980). Em outro caso teremos a História
Quantitativa meramente descritiva, que levanta dados e mais dados mas não
estabelece problemas, não utiliza estes dados minuciosamente levantados para
produzir uma reflexão problematizada sobre a sociedade em um momento ou
processo histórico.
Como o tratamento estatístico foi uma novidade na historiografia da primeira
metade do século XX, nesta época se fez muita história quantitativa meramente
descritiva que de fato soou como uma grande novidade (e, em certo sentido, era
mesmo). Mas levantar os fatos cientificamente também era uma novidade para a
historiografia do século XIX. Depois de décadas acumulando estes fatos (hoje se
sabe que selecionar fatos e conectá-los deste ou daquele jeito é já parte de
uma interpretação ou construção historiográfica) começou-se a se perguntar o
que fazer com estes fatos. A História Problema rejeitou a História Narrativa
meramente factual. Hoje a História Problema deve rejeitar a História
Quantitativa meramente descritiva que alguns ainda insistem em fazer. O
historiador de hoje deve lançar mão dos levantamentos quantitativos
(empreendidos por ele mesmo ou por um outro) para formular problemas. Isto é,
se ele quiser acompanhar este grande fluxo da História Problema que atravessou
o século XX e chegou ao século XXI.
Posto isto, há lugar para todas estas especialidades combinadas às várias
tendências. Para a história quantitativa serial problematizada. Para a história
serial não essencialmente quantitativa (e também problematizada). Haverá até
mesmo um lugar para a história quantitativa descritiva, pois sempre será útil
para um 'historiador problematizador' se beneficiar desta exaustiva pesquisa
que fizeram os historiadores quantitativos descritivos, para a partir dela
formular questões e propor hipóteses. Da mesma forma, os historiadores
problematizadores agradecem aqueles exaustivos levantamentos de fatos que foram
empreendidos pelos historiadores factuais, porque eles podem ser utilizados
como materiais (como pontos de partida) para uma reflexão problematizada sobre
sociedades historicamente localizadas. Qualquer informação pode ter lá a sua
valia em algum momento. O importante é que o historiador profissional
compreenda bem que tipo de história estará fazendo: levantando fatos e dados,
ou construindo uma história problematizada a partir destes fatos e dados?
.
[A primeira parte do presente texto foi extraído do livro "O Projeto de
Pesquisa em História" (Editora Vozes, 2011, 7a edição). A segunda parte
foi extraída do livro "O Campo da História" (Editora Vozes, 2011, 8a
edição)]
[BARROS, José D'Assunção. O Projeto de Pesquisa em História. Petrópolis:
Editora Vozes, 2011, 7a edição. p.47-51]
[BARROS, José D'Assunção. O Campo da História. Petrópolis: Editora Vozes, 2011,
8a edição.
_____________________________
Referências:
BARROS, José D'Assunção. O Projeto de Pesquisa em História. Petrópolis: Editora
Vozes, 2011, 7a edição.
BARROS, José D'Assunção. O Campo da História. Petrópolis: Editora Vozes, 2011,
8a edição.
CHAUNU, Pierre e CHAUNU, Huguette. Séville
et l’Atlantique. Paris: S.E.V.P.E.N., 1955-1956.
FREYRE,
Gilberto. O Escravo nos anúncios de jornais brasileiros do século XIX. São
Paulo: Brasiliana, 1988.
FURET, François. A Oficina da História. Lisboa: Gradiva, 1991. v. I.
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